quinta-feira, 3 de março de 2011

Por Batista Freire

O texto abaixo foi extraído do blog produzido pelo educador João Batista Freire.

Em busca de ampliar as minhas possibilidades de conhecimento reencontro com as produções de Batista Freire que me fazem delirar e me sentir cada vez mais propensa a sonhar e fazer mais por um mundo melhor.


Um exemplo de conscientização

Em meu trabalho com as crianças eu a chamo de tomada de consciência. Paulo Freire a chamava de conscientização. Trata-se daquele recurso, ao alcance dos humanos, de fazer as coisas sabendo que as estamos fazendo. De fazê-las testemunhando-as, como se tivéssemos o poder de sair fora de nossa própria ação e acompanhá-la acontecendo. É um recurso supremo. É tomar pé da realidade sem matar a poesia dos acontecimentos.

Com frequência corro. Corro para ser coerente com minha estrutura humana. Sou o ponto culminante de bilhões de anos de evolução e evoluí para, finalmente, ser uma criatura dotada de braços, pernas e tronco, e da faculdade de me movimentar. O corpo que sou, se ficar inerte, adoecerá. Adoecerá de uma doença de incompatibilidade com aquilo que somos. Somos seres locomotores; negar isso é perder-se na mesmice da inatividade, do sedentarismo.

Quando corro, meu esporte possível, substituo as ações motoras que, muito antigamente, eram necessárias aos homens. Era preciso, para viver, caçar, plantar, colher, guerrear corpo a corpo, andar léguas e mais léguas por dia, cortar, cozinhar, levantar pesos, etc. A tecnologia substituiu tudo isso. Então, eu corro, outros andam, outros nadam ou jogam bola. Quem não faz nada disso e come, come, come, engorda, adoece, morre logo.

Porém, correr, não me serve só para manter a máquina em bom estado de funcionamento. Serve também para eu me perceber. Se, ao correr, eu prestar atenção em minha corrida. Se, ao correr, eu não desviar minha atenção para mais nada que não seja minha corrida, eu poderei testemunhar minha própria corrida. E quando isso acontecer, perceberei minha respiração ofegante, o suor escorrendo por minha pele, a fadiga de meus músculos, algumas dores em minhas articulações, os apoios de meus pés no chão, a cabeça pesando sobre o pescoço, até o sangue correndo em minhas veias. O enorme esforço de correr vários quilômetros dará tal destaque ao que faço, que me perceberei como sou. Ou, pelo menos, terei uma grande oportunidade de me perceber como sou. O grande esforço de correr produz um estado de grande contradição, um grande conflito. E é esse conflito que chamará minha atenção. E é essa atenção concentrada que mobilizará esse recurso humano supremo que chamamos de consciência. Nesse momento, algo de mim irá pairar sobre mim e me verá; eu me verei correndo, eu serei testemunha de mim mesmo correndo, eu terei consciência de mim.

E é assim, nesse processo, por vezes doloroso, conflituoso, que mobilizamos o que há de mais humano em nós: a consciência.